Revista Geografia em Atos, Presidente Prudente, v. 7, n. 1, e023005, 2023. e-ISSN: 1984-1647
DOI: https://doi.org/10.35416/2023.9024 1
OS RETROCESSOS NO COMBATE À FOME E INSEGURANÇA ALIMENTAR NA
AMÉRICA LATINA
RETROCESOS EN LA LUCHA CONTRA EL HAMBRE Y LA INSEGURIDAD
ALIMENTARIA EN AMÉRICA LATINA
THE SETBACKS IN THE FIGHT AGAINST HUNGER AND FOOD INSECURITY IN
LATIN AMERICA
Érica Beatriz Guedes CORADO1
e-mail: ericacorado11@gmail.com
Como referenciar este artigo:
CORADO, Érica Beatriz Guedes. Os retrocessos no
combate à fome e insegurança alimentar na América Latina.
Revista Geografia em Atos, Presidente Prudente, v. 7, n. 1,
e023005. e-ISSN: 1984-1647. DOI:
https://doi.org/10.35416/2023.9024
| Submetido em: 04/11/2021
| Revisões requeridas em: 27/01/2023
| Aprovado em: 28/06/2023
| Publicado em: 14/08/2023
Editoras:
Eda Maria Góes
Karina Malachias Domingos dos Santos
Roberta Oliveira da Fonseca
1
Universidade Federal do Tocantins (UFT), Porto Nacional TO Brasil. Graduada em Relações Internacionais.
Os retrocessos no combate à fome e insegurança alimentar na América Latina
Revista Geografia em Atos, Presidente Prudente, v. 7, n. 1, e023005, 2023. e-ISSN: 1984-1647
DOI: https://doi.org/10.35416/2023.9024 2
RESUMO: Em 2020, a FAO, disponibilizou dados preocupantes sobre a situação da fome no mundo. De
acordo com a organização, mais de 60 milhões de pessoas foram afetadas pela fome desde 2014, de modo
que o número de pessoas subnutridas pode ultrapassar 840 milhões até 2030. A situação no subcontinente
Latino-americano não apresenta uma tendência contrária à observada em escala global. A FAO estima que,
até 2030, cerca de 67 milhões de pessoas na América Latina devem enfrentar a insegurança alimentar, ou
seja, 9,5% de sua população, o que representa um grave quadro. A partir disso, o objetivo deste trabalho é
compreender quais são os fenômenos sociais, políticos e econômicos que viabilizaram o atual cenário de
Insegurança Alimentar na América Latina, tendo em vista que a alimentação é um Direito Humano. Para
alcançar os objetivos aqui apresentados, optou-se por adotar uma metodologia qualitativa. No que diz
respeitos aos processos metodológicos, a ferramenta escolhida para este estudo foi a pesquisa bibliográfica,
além de uma pesquisa documental. Entende-se que, para que haja a garantia da Segurança Alimentar na
América Latina, é preciso haver um rompimento com o sistema capitalista que gera a pobreza e assegura o
benefício de poucos. Deste modo, a guerra contra a miséria e a fome latino-americanas torna-se,
fundamentalmente, a guerra contra o sistema capitalista destrutivo, assim como ao neoimperialismo no Sul
Global.
PALAVRAS-CHAVE: Insegurança alimentar. Fome. América Latina. FAO.
RESUMEN: En 2020, la FAO publidatos preocupantes sobre la situación del hambre en el mundo. Según
la organización, más de 60 millones de personas se han visto afectadas por el hambre desde 2014, por lo
que el mero de personas desnutridas podría superar los 840 millones para 2030. La situación en el
subcontinente latinoamericano no muestra una tendencia contraria a la observada a nivel mundial. La FAO
estima que, para 2030, alrededor de 67 millones de personas en América Latina podrán estar en condiciones
de inseguridad alimentaria, es decir, el 9,5% de su población, lo que representa una situación grave. A partir
de eso, considerando que la alimentación es un Derecho Humano, el objetivo de este trabajo es comprender
cuáles son los fenómenos sociales, políticos y económicos que condujeron al actual escenario de Inseguridad
Alimentaria en América Latina. Para obtener los objetivos aquí presentados, se adoptó una metodología
cualitativa. En cuanto a los procesos metodológicos, las herramientas elegidas para este estudio fueron la
investigación bibliográfica y documental. Se entiende que, para garantizar la Seguridad Alimentaria en
América Latina, debe haber una ruptura con el sistema capitalista que genera pobreza y garantiza el
beneficio de unos pocos. De esta forma, la guerra contra la miseria y el hambre latinoamericanos se
convierte, fundamentalmente, en la guerra contra el sistema capitalista destructivo, así como contra el
Neoimperialismo en el Sur Global.
PALABRAS CLAVE: Inseguridad alimentaria. Hambre. América Latina. FAO.
ABSTRACT: In 2020, FAO released alarming data on the world's hunger situation. According to the
organization, more than 60 million people have been affected by hunger since 2014, so the number of
undernourished people could exceed 840 million by 2030. The situation in the Latin American subcontinent
does not show a different trend from what is observed on a global scale. FAO estimates that by 2030 around
67 million people in Latin America will face food insecurity, this number represents 9.5% of its population,
exhibiting a serious situation. Therefore, this article aims to understand the social, political, and economic
phenomena that contributed to the current scenario of Food Insecurity in Latin America, considering that
food is a Human Right. In order to achieve the goals presented here, a qualitative methodology was
employed. Concerning methodological processes, the chosen tools for this study were bibliographical and
documental research. It is understood that to ensure Food Security in Latin America, there must be a
disruption with the capitalist system that generates poverty and ensures the benefit of few. Thus, the war
against Latin American misery and hunger becomes fundamentally the war against the destructive capitalist
system, as well as neo-imperialism in the Global South.
KEYWORDS: Food Insecurity. Hunger. Latin America. FAO.
Érica Beatriz Guedes CORADO
Revista Geografia em Atos, Presidente Prudente, v. 7, n. 1, e023005, 2023. e-ISSN: 1984-1647
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Introdução
Em 2020, cinco anos após o mundo, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), se comprometer a erradicar a fome no planeta, a Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês) disponibilizou dados
preocupantes sobre a situação da fome no mundo. Indo no caminho contrário dos ODS, a fome
cresce em escala mundial. 2,3 bilhões de pessoas, ou 25,9% da população global, passaram
fome ou não tiveram acesso regular a alimentos nutritivos e suficientes em 2020 e cerca de 924
milhões de pessoas (11,7% da população global) enfrentaram a insegurança alimentar em níveis
severos. Esses números representam um aumento de cerca 150 milhões desde o início da
pandemia de COVID-19 (FAO, 2021).
A situação no subcontinente latino-americano não apresenta uma tendência contrária à
observada em escala global. Na verdade, a América Latina, que historicamente sofre com o
problema endêmico da fome, se encontra em uma situação extremamente delicada. A FAO
estima que, até 2030, cerca de 67 milhões de pessoas na América Latina devem enfrentar a
insegurança alimentar, ou seja, 9,5% de sua população. Em 2019, a insegurança alimentar
atingia 47 milhões de pessoas. A pandemia de COVID-19 levou esses números a se acentuarem
de maneira ainda mais rápida e devastadora e causaram regressos sociais que vão muito além
da saúde pública.
Para Julio Berdegué, representante regional da FAO para a América Latina, estes
números são assustadores e se devem “em primeiro lugar a um crescimento econômico fraco
(...) e ao problema da desigualdade estrutural em nossa região” (CNN BRASIL, 2020, online).
Salay Leme argumenta ainda que “a consequência da desigualdade social que impossibilita o
acesso à alimentação saudável das camadas desfavorecidas da sociedade, mas a fome também
é fruto das relações monetárias estabelecidas no campo sobre a produção de alimento”, uma
vez que “o objetivo final da produção de alimentos hoje é a geração de lucro e a financeirização
do campo, e isso tem consequências para o acesso ao alimento na nossa sociedade” (2021,
online).
Assim sendo, estando submetida às amarras da subordinação na Divisão Internacional
do Trabalho (DIT)
2
, sustentada pela crescente reprimarização da economia, desemprego e crise
2
“A nova divisão internacional do trabalho se assenta sobre uma diferenciação estrutural que conecta, de um lado,
um centro que sedia as grandes corporações especializadas nas tarefas mais à montante e à jusante das CGV’s e,
do outro, uma periferia cujas organizações produtivas se especializam em tarefas essencialmente repetitivas,
padronizadas, bem como no fornecimento de insumos e matérias-primas básicas. O principal traço distintivo das
tarefas periféricas corresponde ao fato de estarem calcadas sobre uma base de conhecimento genérico, codificado,
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econômica que alarma a América Latina; a região parece estar se desarmando completamente
de vias que podem reverter a atual situação e levar comida aos pratos de todos os latino-
americanos (CARVALHO; CARVALHO, 2011).
Estes números, muito além de dados, representam a miséria que desestabiliza toda uma
sociedade. Como aponta Leme (2021, online), "uma sociedade que vive com fome não produz
direito. A sociedade precisa estar alimentada para produzir e desenvolver. Nós moldamos uma
sociedade onde algumas pessoas têm acesso ao alimento e outras não”. É fundamental pensar
como prioridade não o lucro, mas o bem-estar de todas as populações.
Neste sentido, esse estudo busca responder a seguinte pergunta de partida: Por qual
motivo os números relacionados à fome e insegurança alimentar, que apresentavam tendências
decrescentes desde os anos 2000, voltaram a aumentar na América Latina de maneira tão
alarmante? A partir disso, o objetivo deste trabalho é compreender quais são os fenômenos
sociais, políticos e econômicos que viabilizaram o atual cenário de Insegurança Alimentar na
América Latina.
Para mais, os objetivos específicos são 1) Entender quais são os atores envolvidos e
responsáveis por esse fenômeno e, como eles se beneficiam da realidade latino-americana; 2)
como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura tem atuado na região
frente a este retrocesso preocupante e 3) Investigar de que modo é possível construir uma nova
dinâmica socioeconômica na América Latina que garanta maior justiça social e, especialmente,
Segurança Alimentar para toda a população.
Para alcançar os objetivos aqui apresentados, optou-se por adotar uma metodologia
qualitativa. Este tipo de pesquisa, busca “mediante um processo não matemático de
interpretação, descobrir conceitos e relações entre os dados e organizá-los em um esquema
explicativo” (GIL, 2022 p. 2). No que diz respeito aos processos metodológicos, a ferramenta
escolhida para este estudo foi a pesquisa bibliográfica. De acordo com Gil, neste tipo de
metodologia, a argumentação é “desenvolvida com base em material já elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 1994, p. 50).
Por fim, desenvolve-se uma pesquisa documental a partir da análise de sites, revistas,
jornais, relatórios, leis etc. Deste modo, a maioria destes documentos foram retirados
especialmente de bancos de dados online, assim como de relatórios publicados na internet.
independente e de menor grau de complexidade, o que as tornam mais propensas a serem padronizadas, replicadas
e modularizadas; sendo o inverso das tarefas centrais, que se distinguem pela base de conhecimento tácito,
sistémico e mais complexo o que implica expressivo caráter idiossincrático” (OLIVEIRA, 2020, p. 116).
Érica Beatriz Guedes CORADO
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Logo, foram fontes fundamentais sites de instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO, sigla em inglês), a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros. Estes métodos, em
conjunto permitem a construção de um trabalho com uma base argumentativa sólida.
Nesse sentido, o trabalho está dividido em quatro partes, na qual a primeira aborda as
relações entre a mundialização do capital, a estrangeirização de terras e a crise alimentar no
século XXI; a segunda parte discute o papel histórico da FAO, sua organização e tarefas. Além
disso, debate a presença da FAO América Latina e seu histórico de atuação. Na terceira parte,
são expostas as metas da FAO América Latina nos últimos 10 anos, o que de fato foi aplicado
e o que não saiu do papel, além das razões que levaram ao não cumprimento de metas. Por fim,
são tratados os desafios para a segurança alimentar, com base em um contraponto com os
recordes de produção de soft commodities na região e, em especial, no Brasil.
A mundialização do capital, estrangeirização de terras e a crise alimentar no século XXI
A compreensão da atual situação da Insegurança Alimentar depende diretamente da
investigação das dinâmicas econômicas capitalistas neoliberais prevalentes no século XXI e do
fenômeno de mundialização do capital, em que se baseia tal sistema econômico, desencadeando
uma série de transformações mundialmente. Sendo assim, a mundialização da economia, com
base em características do capital monopolista do final do último século, “onde o capital se
integra em escala mundial com a ordem de produzir “em qualquer lugar do mundo” que seja
possível reduzir os custos e acessos ao patamar tecnológico vigente possível, criando assim
empresas mundiais integradas na escala mundial” (OLIVEIRA, 2014, p. 3).
Neste quadro, é possível afirmar que a mundialização: “caracteriza,
predominantemente, por assumir a forma de produção e reprodução do capital em escala
eminentemente mundial, orquestrada cada vez mais pela forma mais absurda e fetichizada do
capital, o capital portador de juros” (LARA; LUPATINI; TRISTÃO, 2012, p. 66). Em suma,
Essa forma mais fetichizada do capital assume na apropriação de riqueza
abstrata a forma absurda de capital que se valoriza sem sair da “esfera
financeira” (D–D’), sem a mediação da produção de mercadorias (D–M–D’).
Nesse sentido, a desregulamentação das “finanças”, como também de
quaisquer leis que se imponham a determinar e controlar as relações sociais,
o crescimento da dívida pública, o surgimento de “novos atores financeiros”,
como os fundos mútuos, fundos de pensão e companhia de seguros, e a
indústria bélica tornam-se os principais elementos para “sustentar” a
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“acumulação financeira”. Desemprego estrutural em massa, miséria,
precarização do trabalho, guerra, destruição ambiental são algumas das
consequências dessa forma de acumulação assumida pelo capital (LARA;
LUPATINI; TRISTÃO, 2012, p. 66).
Deste modo, com argumentos baseados na ideia de “desenvolvimento” e
“modernidade”, a mundialização permite que o capitalismo continue a avançar de maneira
deliberada pelo mundo, de modo que deixa de ver fronteiras nos processos de acumulação
necessários para sua manutenção. Disso resultou a unificação simultânea do capital mundial e
da força de trabalho mundial, no seio de um novo sistema que modificou completamente o
sistema de economias nacionais característico do capitalismo concorrencial. Essa unificação
reduz a independência dos Estados nacionais e exige a formação de instituições supranacionais
para manejar a interdependência crescente dos mesmos (OLIVEIRA, 2014).
No que diz respeito ao combate à fome, “a agricultura que antes baseava-se na produção
dos camponeses sustentada por fortes subsídios agrícolas, na revolução verde, na agroquímica,
no sistema de estoques governamentais, e tinha na FAO seu órgão mundial, passou a conhecer
um profundo processo de mudança” (OLIVEIRA, 2012, p. 6). Grande parte dessas mudanças
se baseia diretamente na estrangeirização de terras
3
no Sul global, em especial na América
Latina e na África. Assim, a problemática alimentar torna-se interesse de governos e de
instituições multilaterais, para além da FAO, o que leva à institucionalização - e legitimação -
da estrangeirização da terra, considerando-a a única solução possível para acabar com a fome
no mundo (PEREIRA, 2020). Além disso,
No século XXI, em meio à convergência de múltiplas crises e mudanças
geopolíticas globais, intensificou-se a corrida mundial por terras,
frequentemente chamada de land grabbing e land rush. A crise financeira, que
teve seu ápice em 2007/2008, é a principal preocupação dos agentes privados
e a partir desta crise, as demais são apropriadas pelo capital para garantir sua
acumulação (PEREIRA 2020, p. 68).
Desta maneira, para que o capitalismo consiga manter seu modo de produção, mesmo
diante de crises, a expansão geográfica é arma fundamental. Como afirma David Harvey (2005,
p. 115), “em contextos de crises, o capital precisa de novos territórios e novos mercados para
investir o capital sobreacumulado, isto é, necessita de ajustes espaciais e temporais para
3
Entende-se a estrangeirização de terras como “o controle de terras nacionais por agentes estrangeiros. Este
controle não se refere somente à propriedade legal da terra, por compra ou arrendamento, mas também o controle
por meio de práticas ilegais, como grilagem ou propriedades registradas em nomes de laranjas (PEREIRA, 2020,
p. 65).
Érica Beatriz Guedes CORADO
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acumulação de capital”. Por isso, as crises são justamente “fases de intensa racionalização na
transformação e expansão geográfica” (HARVEY, 2005, p. 115).
No entanto, como apontado por Josué de Castro (1959, p. 51), "o problema da fome
mundial não é, por conseguinte, um problema de limitação da produção por coerção das forças
naturais; é antes um problema de distribuição”. A estrangeirização da terra não pode ser a
solução para a problemática da fome, uma vez que tem como base a especulação e acumulação,
onde o aumento do preço dos alimentos representa mais lucros para a classe capitalista. Por
isso, a mercantilização do alimento é a principal causa da fome no globo (PEREIRA, 2020).
Neste cenário, a agricultura estrutura-se sobre três pilares: na produção de commodities,
nas bolsas de mercadorias e de futuro e nos monopólios mundiais. A produção de alimentos
deixou de ser questão estratégica nacional e passou a ser mercadoria a ser adquirida no mercado
mundial onde quer que ela seja produzida (OLIVEIRA, 2014). Existe, portanto, uma
reestruturação do regime alimentar, onde, atualmente, “há o incentivo à agroexportação
universal, exigindo que os países do Sul global abram suas economias ao comércio
internacional de alimentos dominado pelo Norte” (PEREIRA, 2020, p. 70).
Por conseguinte, “agentes privados têm utilizado da justificativa de promoção da
segurança alimentar para se apropriar de terras no exterior, tratando a questão alimentar como
um fenômeno puramente econômico e não político” (CASTRO, 1959 apud PEREIRA, 2020,
p. 72). O objetivo final de tais agentes não é a solução da problemática da fome no mundo. Na
verdade, apenas procuram novas fontes de acumulação de capital diante de novas crises de
sobreacumulação do capitalismo, através da especulação de preços de produtos alimentícios e
gerando, consequentemente, mais insegurança alimentar (PEREIRA, 2020).
É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional, controlados
por aquelas minorias obcecadas pela ambição do lucro, muito interessava que
a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares
continuassem a processar-se indefinidamente como puros fenômenos
econômicos, dirigidos no sentido de seus exclusivos interesses financeiros e
não como fenômenos do mais alto interesse social, para o bem-estar da
coletividade (CASTRO, 1959, p. 49-50).
Assim, a crise alimentar deixou, há muito, de se referir à escassez de produção ou falta
de alimentos de modo geral. A principal causa do problema se refere, essencialmente, à
característica corporativista do setor agroalimentar em escala mundial, que enxerga no aumento
do preço dos alimentos no mercado internacional uma alternativa para diversificar o portfólio
de investimentos (BERNARDES et al., 2017). “É a partir da entrada e da criação de novos
mercados e da expansão geográfica que a estrangeirização da terra, sob justificativas para
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solucionar a crise alimentar, se materializa no século XXI” (PEREIRA, 2020, p.73). A fome,
atualmente, está enraizada substituição das dinâmicas territoriais, que antes estava centrada na
produção de uma gama diversa de culturas alimentares e agora, se volta para a produção de
commodities para a exportação, sem compromisso com a Segurança Alimentar.
O histórico da FAO no combate à fome e sua atuação na América Latina: Entre a teoria
e a prática
A Food and Agricultural Organization (FAO), oficialmente criada no dia 16 de outubro
de 1945, é uma das principais agências especializadas do sistema ONU e, atualmente, é o
principal órgão mundial de atuação no combate à fome. Em suma, seu objetivo é combater a
fome através de esforços internacionais, alcançar a segurança alimentar para todas as pessoas e
garantir o acesso a alimentos de alta qualidade e em quantidades suficientes para que as pessoas
possam ter uma vida saudável e ativa (BENZAQUEN, 2020). Para mais, a FAO também visa
preservar a agricultura. Alguns exemplos de projetos criados para isso são: a Convenção
Internacional de Proteção Vegetal (IPPC), o Desert Locust Program, e o Programa de
Fertilizantes. Desta maneira, a FAO trabalha essencialmente no combate à pobreza extrema,
buscando que todos os seres humanos tenham acesso aos pré-requisitos básicos para uma vida
saudável (BENZAQUEN, 2020).
Para compreender a situação com que estão lidando, cientistas e pesquisadores da FAO,
em 1946, realizaram a primeira Pesquisa Mundial de Alimentos, cujo objetivo era entender
melhor o estado de nutrição do mundo (FAO, 2020a). Nesse sentido, a pesquisa concluiu que a
fome e desnutrição generalizadas o crescentes e, apesar de apresentar imprecisões, foi
vanguarda nesse tipo de análise. Desde então, em seus mais de 70 anos de atuação a FAO realiza
diversas pesquisas e relatórios que expõem dados minuciosos sobre a situação da fome,
segurança alimentar e agricultura mundialmente e localmente. Além disso, uma série de
programas foram implementados com o propósito de impacto social direto, os quais podem ser
acompanhados pela sociedade civil. Para mais,
Em 2010-2011 foram implementados pela FAO programas e projetos com um
valor total de US $1707 milhões. Desse valor, 5% é financiado por
contribuições através do programa de Cooperação Técnica da FAO (TCP) e
do Programa Especial de Segurança Alimentar (PESA), 25% por
contribuições voluntárias pelo Programa Cooperativo do Governo, 6% pelo
Fundo Unilateral Trust (UTF) e o restante, 64%, por outras formas de fundos
fiduciários que incluem programas da ONU (CUNHA, 2016, p. 12).
Érica Beatriz Guedes CORADO
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A importância do trabalho da FAO é indiscutível. Desde sua criação, a organização foi
capaz de levantar discussões importantes sobre as áreas em que atua e promove ações que,
apesar de não serem isentas de falhas, trazem resultados importantes internacionalmente. Em 9
de outubro de 2020, a FAO recebeu o Prêmio Nobel da Paz por combater a fome e melhorar as
condições para a paz em áreas atingidas por conflitos através do Programa Mundial de
Alimentos (NEGERI, 2020).
A América Latina, uma das regiões do globo mais vulneráveis em termos econômicos,
políticos e sociais, tem sido uma das prioridades de atuação da FAO no combate à fome e
desigualdade social, dois problemas endêmicos do subcontinente. Assim, “o escritório Regional
da FAO trabalha com três iniciativas prioritárias que respondem aos principais desafios que
enfrenta a segurança alimentar na América Latina e Caribe” (FAO, 2020b, online). Tais
prioridades foram traçadas pelos governos da região durante a última Conferência Regional da
FAO. Esses programas, portanto, apresentam caráter multidimensional e buscam enfrentar as
diferentes faces do problema da fome na América Latina e Caribe, tendo, assim, complexidade
própria.
A Iniciativa 1 - América Latina e Caribe sem Fome - apoia os maiores acordos
e estratégias de segurança alimentar, fortalecendo os planos regionais, sub-
regionais e nacionais de erradicação da fome. A segunda foca no setor que
produz a maior parte dos alimentos na região: Agricultura familiar e sistemas
alimentares inclusivos para o desenvolvimento rural sustentável. A terceira
tem ênfase em alguns dos maiores desafios que ameaçam a segurança
alimentar regional: Uso sustentável dos recursos naturais, adaptação às
mudanças climáticas e gestão de riscos de desastres (FAO, 2020b, online).
Contudo, os desafios que a América Latina enfrenta historicamente colocam em xeque
o sucesso dessas iniciativas. Por isso, o recente desempenho econômico e distributivo da região
é insuficiente para eliminar a extrema pobreza: nos últimos 10 anos, o PIB da América Latina
cresceu menos de 2% ao ano (1,7%). Por sua vez, o coeficiente de Gini - que mede a distribuição
de renda - caiu 0,9% ao ano em um período de 10 anos. No entanto, nos últimos 3 anos, o ritmo
de redução desse coeficiente foi de apenas 0,6% ao ano (BÁRCENA, 2019). Tanto o combate
à desigualdade social como à pobreza são pilares importantes - e indissociáveis - para que seja
possível a erradicação da fome, uma vez que essa é consequência direta da miséria.
Além disso, novas problemáticas como as mudanças climáticas trazem ainda mais
dificuldades enquanto os países latinos se mostram cada vez mais despreparados para enfrentar
o problema de maneira devidamente séria. A pandemia de coronavírus, ainda, levou a um
profundo retrocesso no que diz respeito ao combate à insegurança alimentar, uma vez que
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milhares de pessoas perderam seus empregos e encontram-se sem renda, onde atualmente, a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 10,6% da população esteja
desempregada.
Sendo assim, ao analisar o atual cenário latinoamericano, percebe-se que o combate à
fome e insegurança alimentar na América Latina ainda sofre uma série de obstáculos
complexos, que muitas vezes não conseguem ser contornados pelas políticas propostas pela
FAO. Assim, apesar da importância da atuação da organização, ainda são necessárias soluções
mais abrangentes e profundas, que sejam capazes de tocar nos problemas estruturais da região
de modo a resolvê-los de maneira permanente. Estes problemas envolvem as dificuldades e
subordinação econômica da região, instabilidade política e massiva desigualdade social. Por
fim, “avaliar os impactos dessas políticas é crucial para determinar se estão revertendo as
tendências negativas e reforçando as positivas'' (BÁRCENA, 2019, online).
Os contrapontos entre segurança alimentar e agronegócio na América Latina
O quadro da Segurança Alimentar e da Fome da América Latina apresenta-se em
contraponto direto em relação à atuação do agronegócio na região, uma vez que mesmo que o
número de pessoas com acesso à alimentação adequada esteja em queda, a produção do setor
agrícola se apresenta em curva ascendente. De fato, a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da agência da ONU para agricultura e alimentação
(FAO), no Relatório “Perspectivas Agrícolas 2019-2028”, estimam que a América Latina e
Caribe deverá consolidar sua posição de maior região exportadora de produtos agropecuários
nos próximos dez anos, com o Brasil em posição central na produção e nos embarques de
produtos como soja, milho, carnes, açúcar e café. Até 2028, a fatia nas exportações mundiais
deverá superar 25% (OCDE; FAO, 2019).
Ainda de acordo com a OCDE e FAO, a produção agropecuária tem perspectiva de
crescer 15% no mundo na próxima cada, sem mudanças relevantes no sistema de uso da terra.
Este aumento será distribuído especialmente entre países emergentes e em desenvolvimento,
devido à disponibilidade de recursos naturais na América Latina, além do crescimento da
demanda na Índia e África. No entanto, a expansão produtiva será mais limitada na América do
Norte e na Europa, onde as capacidades produtivas, de modo geral, alcançaram níveis
elevados e as políticas ambientais limitam possibilidades de expansões expressivas (OCDE;
FAO, 2019).
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Nem mesmo a pandemia de COVID-19, que afetou diretamente todas as economias do
globo de maneira devastadora, diminuiu o ritmo de produção do agronegócio na região latino-
americana. Na verdade um conjunto de 14 países latino-americanos (Argentina, Belize, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Paraguai, Peru
e Uruguai) com dados à disposição, as exportações agrícolas “cresceram 8,5% (US$ 1,7 bilhão)
em abril de 2020 ante o mesmo mês de 2019, e somaram US$ 21,2 bilhões, ou 22,3% de um
total global baseado em resultados de 75 países”, de acordo com Joaquín Arias, especialista
técnico internacional do Centro de Análise Estratégica para a Agricultura (CAESPA) do
Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) (PORTAL DO
AGRONEGÓCIO, 2020, online).
Para mais, IICA concluiu que, “também houve crescimentos de destaque das
exportações agrícolas em abril na Costa Rica (8.2%, para US$ 420 milhões), na Argentina
(4,9%, para US$ 3,2 bilhões), na Bolívia (4,9%, para US$ 106 milhões) e na Guatemala (4,7%,
para US$ 507 milhões)”. No mês seguinte, a tendência se manteve: houve aumento de 10% ante
igual mês do ano passado, para US$ 17,7 bilhões (IDEM, 2020, online).
Ainda de acordo com o Instituto, o Brasil segundo os critérios da IICA, exportou US
$8,7 bilhões em produtos agropecuários em abril de 2020, 28,9% mais que um ano antes. Ao
mesmo tempo, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) disponibilizou dados que
mostram o país como o maior produtor de soja do mundo, produzindo cerca de 251,4 milhões
de toneladas do grão. Além disso, o presidente Jair Messias Bolsonaro, em diversos momentos,
reforçou a imagem de potência agrícola exportadora do Brasil, mesmo que, no âmbito
doméstico, a população brasileira estivesse sofrendo amargamente com a Insegurança
Alimentar. Exemplo disso foi o seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU),
em 2020, onde demonstrou orgulho pelo Brasil ter sido responsável pela garantia da
alimentação de mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do globo, devido à agenda exportadora de
commodities (BRASIL, 2021).
Ao analisar-se esses dados em paralelos com os demais acerca da Segurança Alimentar
na América Latina, fica claro que o agronegócio não tem como objetivo principal garantir a
alimentação de todos, mas sim a expansão e maximização de lucros através de uma agricultura
de caráter latifundiário e monocultor, baseada na destruição desnecessária do meio ambiente.
A exemplo disso estão os dados do Relatório El Estado de los Bosques del Mundo”
(FAO, 2016b), que apontam que “o agronegócio gerou quase 70% do desmatamento na
América Latina entre 2000 e 2010”. Além disso, “especialmente na Amazônia, a produção do
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agronegócio para os mercados internacionais foi o principal fator de desmatamento após 1990,
resultado de práticas como o pastoreio extensivo, o cultivo de soja e as plantações de palma
azeiteira (dendê)” (FAO, 2016a, online).
O relatório (2016b) ainda aponta que “em vários países do mundo, as subvenções
agrícolas de grande escala fomentaram o desmatamento, que aumenta a rentabilidade da
produção agropecuária e geram pressão para ampliar a fronteira agrícola” (FAO, 2016b,
online). Isso se comprova ao analisar-se a expansão dos pastos e da produção de soja na região.
Apesar disso, o relatório aponta que não é mais necessário desmatar as florestas para produzir
mais alimento.
Nesse sentido, o agronegócio e seus modos de produção se mostram falhos, uma vez
que estão baseados na lógica invasiva do capital. Em suma, os rumos tomados nos últimos anos
na América Latina e, em geral, em grande parte dos países do sul global se mostram
extremamente perigosos e têm reflexos explícitos na vida da população, especialmente aquelas
consideradas de baixa renda. O que ocorre é “um trágico paradoxo: o aumento dos preços dos
alimentos, por exemplo, enche os bolsos dos gigantes do comércio agrícola e, ao mesmo tempo,
multiplica a fome de multidões que o podem pagar seu encarecido pão de cada dia
(GALEANO, 2010, p. 7).
Os impactos do agronegócio e da adoção de políticas neoliberais para o setor no país
têm ameaçado diretamente a Segurança e Soberania Alimentar de milhares de latino-
americanos, de modo a trazer estatísticas alarmantes sobre a situação da fome e da miséria.
Assim, para que a problemática da Segurança Alimentar seja abordada de maneira efetiva,
novas políticas para o agronegócio são necessárias.
Os caminhos a serem seguidos na busca pela soberania alimentar dos latino-americanos
Sem dúvida os problemas enfrentados na América Latina são profundos, onde raízes
históricas e estruturais, reforçadas pelo quadro social, político, econômico e sanitário que
assolam a região atualmente, a colocam em uma situação de extrema complexidade, na qual
nenhuma proposta de política para o enfrentamento da fome pode ter um viés único, mas sim
várias frentes de atuação, de modo a trabalhar em todas as fontes de instabilidade ao longo do
processo, além de levar em consideração os aspectos culturais específicos da região no que diz
respeito à alimentação.
Nesse sentido, ao levar-se em consideração que a principal razão que levam pessoas à
situação de insegurança alimentar está “na (in)capacidade de comprar alimentos, muitas vezes
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e com razão, atribuída às relações de distribuição [...] no mundo capitalista contemporâneo, e
não resultado de algum déficit de produção mundial de alimentos” (ALTIERI; ROSSET apud
BERNSTEIN, 2015, p. 281). Deste modo, é possível dizer que a principal razão para o atual
quadro de insegurança alimentar na América Latina está diretamente relacionada com a
transformação dos alimentos em commodities para o mercado, com mero objetivo lucrativo.
Por Conseguinte, “tais questões são centrais para a oposição cabal da SA a uma
‘agricultura industrial’ cada vez mais global em seus direcionadores, modalidades e impactos,
que registra mudanças na relação com o alimento, impostas pela industrialização da produção
(agrícola) e globalização do comércio agrícola” (WITTMAN et al., 2010, p. 5), e resulta em
insegurança alimentar, dependência de combustíveis fósseis e aquecimento global
(MCMICHAEL, 2010).
A principal frente de atuação no combate à fome, não só na América Latina, como em
todo o globo, está na quebra da lógica de capitalização dos alimentos e da Nova Divisão
Internacional do Trabalho, que se baseia diretamente na inviabilização da emancipação
econômica do Sul Global em relação aos países desenvolvidos. Em suma, é necessário que a
estrutura vertical de poder nas relações internacionais seja desmantelada (COX, 1993)
4
.
Desta maneira e tendo em vista que o conceito de Soberania Alimentar, foi definido no
Brasil na III Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional de 2007 como “[...] o direito de
definir suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos
que garantam o direito à alimentação para toda a população respeitando as múltiplas
características culturais dos povos” (CONSEA, 2007), o incentivo à Agricultura Familiar e à
Reforma Agrária se mostram como possíveis caminhos para a Soberania Alimentar, por meio
do enfrentamento à desigualdade rural e à pobreza .
Isso se deve ao fato de que o primeiro Boletim de Agricultura Familiar da FAO alega
que a Agricultura Familiar é responsável por 60% da produção de alimentos na América Latina
e no Caribe. Além disso, a atividade também responde por 70% dos empregos gerados pelo
setor agrícola (FAO, 2012). No caso específico do Brasil, a Agricultura Familiar foi a área da
4
Para Cox (1993), esta estrutura pode ser explicada a partir do conceito de Hegemonia, que “no plano internacional
não é apenas uma ordem entre Estados. É uma ordem no interior de uma economia mundial com um modo de
produção dominante que penetra todos os países e se vincula a outros modos de produção subordinados. É também
um complexo de relações sociais internacionais que une as classes sociais de diversos países. A hegemonia mundial
pode ser definida como uma estrutura social, uma estrutura econômica e uma estrutura política, e não pode ser
apenas uma dessas a hegemonia mundial se expressa em normas, instituições e mecanismos universais que
estabelecem regras gerais de comportamento para os Estados e para as forças da sociedade civil que atuam além
das fronteiras nacionais regras que apoiam o modo de produção dominante (COX, 1993, p. 113).
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produção responsável por levar comida à mesa de 70% dos brasileiros. Por isso, Raúl Benítez
(2012 apud LOPES, online) representante regional da organização, argumentou acerca do
boletim que “além de sua importância como provedor de alimentos para as cidades, gerador de
empregos agrícolas e fonte de receita para os mais pobres, a agricultura familiar contribui para
o desenvolvimento equilibrado dos territórios e das comunidades rurais”.
Em contrapartida, um estudo realizado pela OXFAM International para o relatório
Terra, Poder e Desigualdade na América Latina comparando o cenário da concentração das
propriedades rurais em 15 países da região concluiu que “apenas 1% das fazendas ou
estabelecimentos rurais na América Latina concentra mais da metade (ou 51,19%) de toda a
superfície agrícola da região”, sendo “a Colômbia [...] um dos casos mais extremos: só o 0,4%
das propriedades concentram mais de 67% da terra produtiva. no Brasil, 45% da área rural
está nas mãos de menos de 1% das propriedades (OXFAM, 2019, online). Por isso, o coeficiente
de GINI para a Distribuição de Terra mostra que, na América Latina, o Brasil ocupa o quinto
pior lugar desse ranking, com nota 0,87.
O modelo de desenvolvimento estabelecido na América Latina, sustentado
principalmente pela exploração irresponsável de recursos naturais e pelo aprofundamento da
pobreza da maioria da população, tem como consequência indiscutível a concentração de
enormes faixas de terras por um número pequeno de indivíduos, enquanto muitas famílias têm
propriedades muito pequenas. Assim, terras que teriam capacidade de suprir as necessidades
internas dos países latino-americanos são destinadas a um único produto, a serviço da demanda
estrangeira. Nesse sentido, "apoiando a agricultura familiar, podemos transformar um setor que
tem sido negativamente associado ao problema da fome em parte da solução” (GRAZIANO
apud HORROCKS, 2017, p. 18).
Como apontado por Eduardo Galeano (2010, p. 4), “a monocultura é uma prisão. A
diversidade, ao contrário, liberta. A independência se restringe ao hino e à bandeira se não se
fundamenta na Soberania Alimentar”. Até porque “a autodeterminação começa pela boca”. O
primeiro passo para a prosperidade da Soberania Alimentar na América Latina está, portanto,
na emancipação em relação ao capitalismo predatório e aos mitos da lógica neoliberal de
mercado.
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Conclusões
As dificuldades envolvendo a questão alimentar na América Latina, muitas vezes abarca
aspectos e nuances muito mais densos do que, em um primeiro momento, pode-se ser imputado
à problemática. Desde modo, ao tratar desse tema, que atualmente apresenta uma gravidade
extrema, é necessário analisar, também, diversos panoramas históricos, políticos, sociais e
econômicos. Ou seja, a simplificação desta investigação não é possível. Sendo assim, o tema
precisa ser estudado com base em suas particularidades, de modo que soluções factuais possam
ser aplicadas.
Portanto, a explicação para o atual cenário devastador em que a América Latina se
encontra em termos de Segurança Alimentar, encontra-se no fato de que, desde o período de
colonização, a região esteve presa às amarras da subordinação, na qual nossas perdas
representam os ganhos de países que se desenvolveram às custas dos recursos naturais e
escravidão na região. Em suma, a riqueza existente nos países do Norte Global depende
diretamente da miséria dos países do Sul Global.
Ademais, existe a predominância da desigualdade no campo e de um sistema agrícola
de latifúndios monocultores improdutivos - que muitas vezes envolve, também, subempregos -
viabiliza a produção de alimentos que pouco fazem parte da dieta dos latino-americanos, uma
vez que está voltada apenas para o mercado de commodities. Assim, uma gigantesca quantidade
de grãos, como a soja e o milho, é exportada, visando apenas o lucro - a partir de um dólar alto
-, e não a Segurança Alimentar. Em suma, o domínio de noções mercadológicas, atrelado ao
monopólio de terras nao de pequenos grupos é extremamente nocivo para a região e apenas
retroalimenta a realidade de desigualdade e fome.
Diante disso, fica claro que, para que haja a garantia da Segurança Alimentar na América
Latina, é preciso haver um rompimento com o sistema capitalista que gera a pobreza e assegura
o benefício de poucos. Deste modo, a guerra contra a miséria e a fome latino-americanas torna-
se, fundamentalmente, a guerra contra o sistema capitalista destrutivo, assim como ao
neoimperialismo no Sul Global. A garantia da Segurança Alimentar na região, portanto, vai
muito além da construção de políticas públicas compensatórias - que muitas vezes são
defendidas pela FAO.
Na verdade, a FAO sua capacidade de atuação limitada pela própria Ordem
Internacional vigente. Isso porque, a Organização foi instituída dentro de uma ordem que visa
viabilizar e manter o capitalismo - principal causador da fome - como predominante no Sistema
Internacional. Deste modo, a FAO pouco pode fazer para promover a um enfrentamento à atual
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conjuntura. Assim, a instituição se limita a propor soluções paliativas, mas que não vão à raiz
do problema.
Para mais, é necessário que exista o incentivo a reformas agrárias reais e abrangentes
em toda a América Latina, bem como a viabilização à Agricultura Familiar, de modo que a
prioridade seja levar comida saudável à mesa de todos com pouco impacto ao meio ambiente.
Exemplo disso é o fato de que, de acordo com o Censo Agropecuário Brasileiro de 2017, 77%
dos estabelecimentos trata-se de pequenas propriedades voltadas para a agricultura familiar e
são responsáveis por garantir 70% do alimento que chega à mesa do povo brasileiro.
A partir deste estudo, fica evidente que a Segurança Alimentar é um tema de extrema
complexidade e muito sensível, envolvendo diversas camadas sociais, históricas e econômicas.
Por isso, demanda soluções multifacetadas e que atuem em diferentes direções
simultaneamente. Este estudo, portanto, não pretende encerrar as discussões acerca da
problemática. Na verdade, foram apresentadas aqui apenas uma breve fatia do problema. Desta
maneira, é essencial que as discussões continuem no meio acadêmico em busca de respostas
ainda mais completas e profundas, mas sem ignorar a urgência do problema.
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